A última ceia do italiano Carlo Petrini (fundador e presidente do Slow Food) no
Brasil, depois de uma semana atribulada, foi longa mas tranquila. Éramos apenas quatro, num jantar de quatro horas no Maní. Deu para conversar calmamente, e pude observar mais de perto essa figura carismática, que encantou todas as platéias para as quais falou desde que chegou a Brasília, no sábado 20 de março, para o encontro Terra Madre Brasil 2, em Brasília (para saber mais sobre o evento, veja matéria aqui no Basilico)
O ex-militante comunista, ainda hoje jornalista gastronômico, hoje corre o mundo militando pela causa dos alimentos "bons, limpos e justos" -- bons de
sabor, limpos no meio ambiente e justo socialmente --, que já atraiu ao Slow Food mais de cem mil afiliados.
Cara de esquerda na juventude envelheceu "sem perder a ternura" nem
as convicções básicas -- que não obstante, adaptou para os novos tempos,
encantando a juventude e os idealistas mais velhos que vêm seus antigos
companheiros pulando aos saltos para o outro lado da barricada...
Carlo
Petrini fala durante jantar no Terra Madre Brasil, em Brasília
Quem quer ser um camponês?
O seu discurso sempre fala da simplicidade, do modo de vida e de comer dos nossos avós, de valores humanos perdidos. É bonito e faz sentido. Mas pode ser perigoso diante do crescente endeusamento da burrice e da ignorância (como mostrei no post sobre os chatos), como se (neste caso do Slow Food) a
ingenuidade do camponês pobre, do caboclo isolado, fossem um ideal. Não são. Os conhecimentos que esses produtores têm da terra, assim como seus produtos, são um patrimônio valiosíssimo; mas sua falta de cultura geral, seu despreparo imposto pela alienação a que são submetidos, sua impossibilidade de se apropriar de valores (da cultura, da gastronomia etc.) que parte da humanidade usufrui, não deveriam causar inveja a ninguém.
Estantes e Panelas, Petrini fizera o elogio da comidinha da vovó (citava a
ribollita toscana), feita de ingredientes simples, como a única que é
histórica, que ficará para sempre, ao contrário da nouvelle cuisine francesa...
Derramou ali o combustível que os reacionários da culinária sempre esperam,
quando querem criticar as inovações. Completou depois sua peroração
perigosamente conservadora ridicularizando um suposto amigo que ao beber um vinho de Bordeaux, afirmou sentir ali cheiro de cavalo suado.
Entre a ribollita e a feijoada esferificada
Por sorte, na sua última ceia, não ficou dúvida de que nem ele mesmo acha que as coisas são assim. No Maní, ele se deliciou com cada prato do longo (mas leve como sempre) menu-degustação preparado pela chef Helena Rizzo. "Ela não errou um!", exclamava ele, raspando cada prato. E o que havia no prato? A ribollita da vovó? Não, Petrini urrou de prazer comendo... esferificação de feijoada, desconstrução de salada Waldorf, espuma de pupunha, ovo a baixa temperatura -- todos de paladar brasileiro, mas diretamente influenciados pela vanguarda espanhola de Adrià. Ah, e quando mudávamos de vinho, Petrini queria saber qual era a uva, onde era feito... Um gourmet de verdade.
exagerou na paródia (disse ele)
véspera, mas ele não respondera -- de uma desavença que teve no Partido
Comunista, nos anos 60: militante, ele participara de uma reunião numa Casa del Popolo em Montalcino, ao final da qual foram servidos dois vinhos locais -- um Brunello e um Rosso -- que, segundo ele, eram intragáveis; de volta ao
Piemonte, ele escreveu um relatório sobre a reunião onde dizia que, se na sua
terra alguém se atrevesse a servir um vinho tão ruim numa reunião, seria
escorraçado como um nazi-fascista. Os superiores acharam a comparação muito forte, o relatório provocou desdobramentos delicados... mas é outra história.)
gosta, a não ser os chatos.
coisa (se é que a história é verdadeira) é que não me parece tão inapropriado
comentar um aroma típico de um Bordeaux com uma pessoa como Petrini -- que é
jornalista de gastronomia, que edita guias gastronômicos, que é um gourmet
experiente, que come feijoada esferificada e adora, que se interessa pelos
vinhos a ponto de deflagrar uma crise no Partido Comunista por causa deles... O
amigo, parece, estaria compartilhando uma sensação com a pessoa certa. A menos
que estivesse passando a final da Copa do Mundo entre Brasil e Itália na TV.
Nesse caso, ele não estaria sendo aristocrático, apenas um chato padrão
cumprindo seu papel.